Entrevista com a cordelista e escritora Jarid Arraes

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Na semana do dia 21 de março – Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial -, a CAMTRA entrevista Jarid Arraes, mulher negra, escritora e cordelista. Jarid, ao abordar questões raciais e de gênero em seus cordéis e livros, escreve histórias que enfrentam o racismo e o machismo

Quando e por que você decidiu escrever cordéis que falam sobre questões raciais e de gênero?

R.: Decidi escrever cordéis abordando questões raciais e de gênero porque sempre percebi a ausência de mulheres e de pessoas negras como protagonistas nos cordéis e na literatura em geral, principalmente sob um aspecto não debochoso, não preconceituoso. Quis criar histórias que teriam feito muita diferença na minha vida enquanto eu crescia e me interessava por literatura e por cordel, sobretudo pensando no potencial educativo e transformador que o cordel tem, por ser muito acessível, muito lúdico. E acho que, na verdade, nem sequer preciso de muitas justificativas; cada vez mais, fica claro para mim que a pergunta é: por que não? Por que não poderia escrever um cordel que falasse sobre o contexto de uma personagem que enfrenta a violência doméstica ou de uma garotinha que descobre que seu cabelo crespo é mágico?

E seu livro, as Lendas de Dandara, de onde surgiu a ideia para a sua criação?

R.: Decidi escrever um livro com lendas sobre Dandara dos Palmares, contando episódios de sua vida desde a infância, porque não temos essas informações disponíveis. Muitas mulheres negras que fizeram história no Brasil e no mundo ainda estão escondidas, porque não ouvimos falar sobre elas nas escolas e nem na mídia. Isso já me incomodava, porque só ouvir falar de Dandara quando adulta, mas o empurrão definitivo foi quando publiquei um texto na Revista Fórum falando sobre Dandara no contexto do Dia da Consciência Negra; recebi muitos comentários agressivos e várias pessoas diziam que ela não era nada mais do que uma lenda. Mas se ela é uma lenda, por que não tínhamos as suas lendas? Agora temos. Fui lá e escrevi, criei a história dela desde o seu nascimento, imaginando como essa guerreira poderia ser, a importância do seu simbolismo e por que seu nome sobreviveu até hoje, mesmo com a falta de registros históricos, mesmo jamais sendo citada na escola ou sequer no entretenimento.

Você acredita que os recortes de raça e gênero influenciam no modo como a história do nosso país foi e é escrita? E de que maneira isso pode se relacionar com a nossa construção de identidade racial?

R.: Nossa história é contada sob o ponto de vista das/os europeias/us, de quem veio colonizar e de quem se estabeleceu como um ser humano livre; então nossa história ainda é contada sob a perspectiva branca. Aprendemos todos os casos amorosos do imperador, mas não aprendemos nada sobre as pessoas que foram sequestradas de seus países e foram escravizadas por séculos aqui no Brasil. Pior, nem sequer aprendemos que essa história é recente, que tem pouco mais de cem anos de distância e que ainda enfrentamos muitas consequências desse regime escravista. O fato de tantas gerações terem crescido sem conhecer a África, seus países, culturas, religiões, etc., nos mostra que ainda vivemos debaixo de uma ideia racista de que só os brancos produziram grandes coisas e contribuíram para a história da humanidade. Vivemos acreditando e espalhando mentiras também; lembro muito claramente que aprendi que as negras e os negros não lutavam contra a escravidão, que as índias e os índios não se deixavam escravizar e por isso muitos morreram, enquanto as negras e os negros simplesmente se conformavam. Só adulta fui descobrir que isso não é verdade, pois existiram revoltas, quilombos e líderes fortes que lutavam pelos seus e contra a escravidão. E isso influencia nossa cultura e o imaginário social de maneira nociva, perpetua o racismo e ideias racistas que muitas vezes estão bastante disfarçadas, pois não aprendemos a questionar esse racismo para eliminá-lo do nosso meio. Se os negros nunca fizeram nada grandioso – segundo a omissão das escolas e da mídia -, se nunca lutaram contra a tirania, se nunca descobriram nada, nem inventaram nada, se não possuem culturas ricas e bonitas, se não possuem mitologias complexas, é lógico que as pessoas vão olhar para as negras e os negros – e para toda a África – com um olhar preconceituoso, como se a inferioridade fosse um fato inegável. E mais: quem gostaria de ser identificado e de se identificar como negra ou negro, se em nenhum momento olhar para nossas raízes negras com o olhar positivo e orgulhoso que olhamos para nossas raízes italianas, portuguesas, espanholas, alemãs, japonesas, entre outras presentes no Brasil? Não é tão difícil assim perceber que isso afasta as pessoas de suas origens, faz com que elas se envergonhem e rejeitem seus traços físicos negros, ou o pouco que conhecemos sobre África, como é o caso das religiões de matriz africana que sofrem muita discriminação. E isso só se muda com conhecimento, com o ensino da história da África e da história afrobrasileira.

Para você, medidas como a  lei que propõe o ensino de História Afro-Brasileira e Africana no currículo escolar brasileiro (Lei nº 10.639/2003) são um modo de construirmos uma memória nacional que questione a compressão eurocêntrica de nossa história?

R.: A lei 10.639 é fundamental para que consigamos falar sobre África e sobre o legado da África para o mundo. A partir dessa lei, reconhecemos oficialmente a existência de uma grande problema: não conhecemos nada sobre nossas raízes africanas e isso gera consequências terríveis, como o racismo. Muita gente nem sabe que o continente africano é cheio de países diversos, que por lá se lutou e ainda se luta contra ditaduras, e que essa luta é um dos fatos que trouxe avanços e contribuições para toda humanidade. Também é importante conhecermos a história das pessoas negras aqui no Brasil, não de maneira superficial e quase romântica, como se contássemos uma ficção leve, mas enfrentando o que foi a escravidão de verdade, seus impactos severos e o que gerou para toda nossa cultura. O problema é que uma lei sozinha não muda tudo, já que ainda precisamos de sua implementação; precisamos que as escolas se interessem em falar sobre tudo isso, que busquem material de qualidade, que se dedique tempo e recursos para a formação das professoras e dos professores, que a literatura seja mais diversificada, enfim, falta todo o resto.

Em seu site, você conta sobre uma professora do ensino público que usou seus cordéis para uma atividade em sala de aula, seu trabalho costuma ser usado por educadoras e educadores?

R.: Isso é o que me deixa mais feliz e me faz sentir muito realizada, muito recompensada. A maioria das pessoas que compra meus cordéis e meu livro é de profissionais da educação – professoras/es, coordenadoras/es, diretoras/es, etc. Sempre recebo mensagens me contando que minhas obras foram utilizadas em sala de aula, tanto em aulas de história, quanto de literatura, de português, de teatro. É aí que vemos que existem pessoas se dedicando a transformar nosso país e construir uma realidade sem racismo e sem machismo. Tenho profunda admiração por esses profissionais, sou muito grata por poder fazer parte disso com o que eu escrevo.

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A grande mídia é racista e impõe um embraquecimento em seus espaços, onde raramente encontramos personagens negros como protagonistas de histórias. Para você, como a falta de representatividade afeta a vida das mulheres negras? Escrever cordéis como o “Quem tem crespo é rainha” é uma forma de enfrentamento ao racismo?

R.: A falta de representatividade é um problema generalizado; está na mídia, na televisão, no cinema e na literatura, mas também está nas escolas. Não é difícil compreender o quanto isso é ruim: imagine uma criança que cresce escutando o tempo inteiro que suas características física são feias e precisam ser modificadas a qualquer custo; imagina essa criança sofrendo deboche na escola, sem receber amparo das/os adultas/os, ouvindo histórias que nunca possuem pessoas que se parecem com ela, escutando que o lugar de pessoas que possuem a sua aparência é um lugar inferior, de servidão, de humilhação. Imagine o que é crescer aprendendo que seus ancestrais eram preguiçosos, que não faziam nada para que suas vidas melhorassem, que não eram considerados seres humanos com alma e em nenhum momento ouvir pessoas apresentando isso como algo reprovável e que precisa ser combatido ainda hoje. Imagine olhar para os desenhos animados que você adora e todas as crianças e adultos terem a pele mais clara que a sua e o cabelo liso; imagine o que é nunca ver alguém parecido com você em posição de destaque, de celebração, de reconhecimento, de sucesso. Isso tudo tem impactos profundos e devastadores na autoestima das pessoas negras, mas os impactos não se limitam a psiqué individual ou até mesmo coletiva das pessoas negras, os impactos também chegam até as pessoas brancas e geram uma mentalidade de superioridade – essa é uma receita muito eficiente para o racismo. Então um cordel como o “Quem tem crespo é rainha” é uma forma de enfrentar o racismo, de tentar reparar um estrago muito grande, de contar para as crianças e para os adultos que as características físicas negras não são inferiores e nem precisam ser mudadas, mas precisamos de muito mais. É um processo lento, ainda mais em um país que se recusa a reconhecer e combater o racismo, mas não dá pra sentar e esperar de braços cruzados.

E, por fim, enquanto uma escritora mulher e negra que papel você acredita ocupar em nossa sociedade? De que modo a sua identidade influencia seu processo criativo?

R.: Acho que o fato de eu ser mulher negra e escritora me traz uma visão de mundo bem específica, ainda mais levando em consideração que sou do interior do Ceará. E isso pode ser muito refletido e utilizado na minha produção literária, pois as personagens que crio possuem uma profundidade específica, porque elas vão além do “mais do mesmo” que infelizmente ainda predomina na literatura. De qualquer forma, minha escrita é muito política, porque o simples fato de apresentar uma protagonista negra complexa é ainda muito “diferente”, muito “inovador”. Estamos tão mal, que pouco já é muito. Isso deveria ser algo comum, só mais uma possibilidade no meio de milhares de livros com protagonistas e histórias diversas, mas infelizmente ainda é um ato de afirmação. Pelo menos eu espero que eu possa contribuir para que essa realidade seja transformada o mais breve possível; desejo que minhas obras cheguem até pessoas que vão se permitir transformar e que vão transformar a vida ao seu redor. Mais do que vender 10 mil cordéis em 6 meses, é esse o tipo de realização que cria raízes, cresce e dá frutos. Acredito na literatura como uma ferramenta de libertação e acredito que essa minha visão tem tudo a ver com quem eu sou e de onde venho.

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