NOTA DA FRENTE NACIONAL CONTRA A CRIMINALIZAÇÃO DAS MULHERES E PELA LEGALIZAÇÃO DO ABORTO PELA REVOGAÇÃO IMEDIATA DA PORTARIA 2282/2020/GM/MS

Compartilhe esta página:
Twitter
Visit Us
Follow Me

NOTA DA FRENTE NACIONAL CONTRA A CRIMINALIZAÇÃO DAS MULHERES E PELA LEGALIZAÇÃO DO ABORTO PELA REVOGAÇÃO IMEDIATA DA PORTARIA 2282/2020/GM/MS

Vivenciamos um Brasil em que as violências e ataques contra a dignidade das meninas e mulheres vêm se aprofundando a cada dia, tanto pela ação quanto pela omissão do Estado brasileiro. A dura realidade a que meninas e mulheres, vítimas de violência sexual são submetidas para realizar um procedimento assegurado por Lei, ficou escancarada após o recente ocorrido com uma criança de 10 anos que, por quase metade de sua vida, fora violada por um parente próximo e teve o aborto legal negado em seu estado vendo-se obrigada a peregrinar pelo país em busca de um serviço de saúde que o realizasse.
Como se não bastasse os danos físicos e psicológicos resultados de quatro anos de violações, a criança teve seu nome e endereço expostos online por figuras públicas que se autodenominam “pró-vida” e “anti-aborto”, intimamente ligadas a Ministra da Família e dos Direitos Humanos Damares Alves. E, após ter seu direito ao aborto legal negado por um hospital público de Vitória, ao chegar em Pernambuco onde o procedimento foi realizado, teve novamente seu itinerário exposto publicamente. O ápice dessa violência contra a criança – violentada agora também pelo estado que lhe negou um direito -, se deu em frente ao serviço de saúde que a acolheu em Recife quando, convocados por parlamentares da Assembléia Legislativa de Pernambuco, novamente grupos fundamentalistas religiosos ligados a setores das igrejas católicas e evangélicas se aglomeraram em frente ao CISAM com o objetivo de impedir sua passagem, constranger a vítima e os profissionais de saúde.
O caso, que ganhou destaque na mídia pela sua crueldade e graças às denúncias feitas pelos movimentos feministas sobre a série de violações cometidas pelo Estado, reavivou o debate público sobre a importância do acesso aos serviços de aborto legal, da legalização do aborto e da laicidade do Estado, culminando poucos dias depois com a publicação da Portaria 2.282/2020 pelo ministério da saúde.
A resposta do Ministério da Saúde ao sofrimento de meninas e mulheres no Brasil é a publicação de uma Portaria que normatiza a violência institucional nos serviços de atendimento às vítimas de violência sexual.
Ao invés de acolher e criar formas de facilitar e suavizar o acesso das vítimas aos serviços de saúde, o Ministério da Saúde constrói mais barreiras, constrangimentos e violências ao publicar a Portaria nº 2.282/2020, uma nítida retaliação do Governo Federal, que trouxe novas orientações para o atendimento dos serviços de aborto legal tornando ainda mais tortuoso esse duro processo para as vítimas e ferindo diretamente a dignidade de meninas e mulheres que, mais uma vez, são atingidas pela mão pesada do próprio Estado.
A publicação da Portaria se coloca em contrariedade com os princípios do SUS de acolhimento e resolutividade, mas também e às normativas já existentes no âmbito do atendimento ao aborto previsto em Lei. É justamente no percurso dentro do serviço de saúde que a Portaria coloca barreiras e constrangimentos enormes para as vítimas, tentando dissuadi-las a desistir de acessar seu direito, num momento de extrema vulnerabilidade e sofrimento: quando buscam o acolhimento de seu direito pelo Estado. Ao oferecer às vítimas que ouçam e visualizem o feto/embrião num ultrassom, além da notificação obrigatória à autoridade policial mesmo contra a vontade da vítima, são dois exemplos dessa violência a que podem ser submetidas a partir de agora.
A moral social e religiosa amedronta e coloca em risco as gestantes em processos de abortamento, mesmo que espontâneos! Morremos diariamente nas filas das maternidades por preconceito!
A negligência da sociedade em relação às violências que acometem principalmente as meninas e mulheres negras e empobrecidas é enorme. Mas, o Estado mostrar-se um avalista de tais violências é gravíssimo e uma expressão do caráter racista e sexista das violências institucionais. A Frente Nacional Contra a Criminalização das Mulheres e Pela Legalização do Aborto se coloca ao lado das vozes que defendem a dignidade e o direito ao acesso aos serviços de saúde pública livres de discriminação de qualquer tipo, especialmente porque a maioria da população usuária do referido serviço é composta justamente pelos setores mais vulneráveis da sociedade.
Humanizar o atendimento a vítimas de violência sexual e prevenir a revitimização nos serviços de saúde pública é uma questão de justiça social!
Essa recente Portaria é ainda uma afronta a importantes marcos que orientam o Estado brasileiro também no que tange à assistência à saúde das mulheres no Brasil, e que sempre estiveram na base da elaboração de protocolos e normativas para que esse atendimento ocorra de forma organizada, humanizada, acolhedora. Tais marcos, construídos através da incidências e participação do movimento de mulheres no país, junto aos acordos internacionais, provocaram um avanço ao colocar a realidade da violência contra as mulheres como tema de saúde pública, reivindicando políticas adequadas para o acolhimento integral e humanizado ao aborto previsto em Lei nos serviços de saúde.
A criminalização do aborto no Brasil impõe barreiras morais e institucionais no acesso ao procedimento mesmo nos casos previstos em lei!
E foi nessa perspectiva que o então Ministério da Saúde – através de sua Área Técnica de Saúde das Mulheres – construiu as Normas Técnicas de Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes (1999); Aspectos Jurídicos do atendimento a vítimas de violência sexual (2005) e Atendimento humanizado ao abortamento (2005), atualizadas em 2011.
Essas normas técnicas e diretrizes buscam comprometer o Estado no seu dever com o direito à saúde, a não violência e a não discriminação. Orientam os serviços de saúde como responsável na realização de um direito existente mesmo antes da Constituição de 1988, como o direito ao aborto legal de 1940. São deveres reconhecidos nacional e internacionalmente. Por isso, não podem ser ignorados a cada mudança de governo ou de gestores porque seria instaurar uma insegurança permanente em área tão cara às mulheres: a saúde.
Conceitos como acolhimento, escuta sem julgamentos, não revitimização das mulheres, direito ao sigilo e respeito à sua autonomia são os que respaldam a não necessidade de um Boletim de Ocorrência para realização de qualquer procedimento. Porque saúde não é delegacia e a palavra da mulher deve bastar para assegurar o procedimento.
Não é possível tumultuar o debate democrático sobre o aborto no Brasil com artifícios normativos que confundem conceitos e compromissos firmados nacional e internacionalmente pelo Estado brasileiro. Não se pode aceitar a promoção da violência com o fim de silenciar o debate sobre o aborto.
Afirmamos que há no país uma aliança patriarcal, fundamentalista e reacionária contra a autonomia e os direitos reprodutivos das mulheres e, queremos relembrar ao Ministério da Saúde e ao estado brasileiro, que em seu artigo 196, a Constituição Brasileira de 1988 – primeiro marco regulatório de toda a política de saúde no Brasil – afirma que: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução dos riscos de doença e de outros agravos e o acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. E, pautada por esse compromisso do Estado brasileiro, a Lei Orgânica de Saúde (Lei 8080/1990) diz que o “dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação”.
Ao condicionar a assistência em saúde à comunicação externa do estupro à polícia, independentemente da vontade da vítima, o Ministério da Saúde viola a autonomia das mulheres, colocando-as em situação de suspeita e profissionais da equipe de saúde no lugar de policiais ou investigadores. Com isso, a referida portaria, também afronta a Lei 10.778/2003, que determina o dever sigilo no atendimento a qualquer usuária ou usuário do SUS. Sim, a comunicação obrigatória de violência sexual realizada pelo serviço de saúde à polícia, sem o consentimento ou autorização da mulher, rompe com os princípios éticos profissionai, da afetividade e confiança que norteiam a relação entre profissional e usuária, edificada na capacidade de acolhimento, vinculação, responsabilidade e resolutividade que, por sua vez, são condições para a efetivação da atenção em saúde.
A notificação compulsória para casos de violência já existe! E tem como objetivo subsidiar políticas públicas de prevenção e não dar início a um processo penal contra a vontade da vítima!
Ao criar esses e outros processos dolorosos, o ministério nega ainda diretrizes que estabelecem que a saúde é direito fundamental e requisito para desenvolvimento social e econômico. O acesso universal e igualitário à saúde é norma constitucional e a interrupção da gravidez já há muito foi compreendida pelo SUS como uma questão de saúde pública.Negar ou dificultar o acesso ao aborto legal é uma violação dos direitos humanos das mulheres, é impedir uma intervenção em saúde necessária e legal a uma violência vivida e, portanto, inconstitucional, além de negar e invisibilizar, uma dor que tem nome, tornando-se um tratamento cruel, desumano e degradante da própria dignidade.
Diante do acima exposto, a Frente Nacional Contra a Criminalização das Mulheres e Pela Legalização do Aborto, se soma a todas as instituições, redes, movimentos, associações profissionais e a tantas outras vozes que rechaçam esta portaria e defendem os serviços de aborto legal, reafirmando seu compromisso com a defesa dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, particularmente no que tange à livre decisão das mulheres de acesso à interrupção de uma gravidez prevista em Lei. E exigir que:
Os princípios da laicidade, da equidade, da benevolência e não maledicência guie as políticas de saúde, tornando o SUS cada vez mais um equipamento público acessível, acolhedor e ciente de seu papel de cuidar da saúde e vida da população brasileira;
Os serviços de saúde atuem em compatibilidade com os direitos humanos das mulheres, a Constituição brasileira, a Lei Orgânica de Saúde e outras normativas que recomendam a igualdade e equidade entre homens e mulheres, a eliminação de toda espécie de violência, o respeito à autonomia, direito à privacidade/intimidade, confidencialidade, consentimento e escolha das mulheres;
Os serviços de aborto legal mantenham suas portas abertas para toda e qualquer mulher – criança, adolescente ou adulta -, facilitando seu acesso e tornando um pouco mais suave o sofrimento causado por um estupro ou por risco de morte;
A imediata revogação da Portaria 2282/2020, que introduz a tortura a mulheres e meninas usuárias do SUS, ao incluir vários processos dolorosos e violentadores para acesso ao aborto legal.
Nem pecadoras, nem criminosas! Pela vida das mulheres, legalizar o aborto já!

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

ÚLTIMAS POSTAGENS

CATEGORIAS

Tags

Page Reader Press Enter to Read Page Content Out Loud Press Enter to Pause or Restart Reading Page Content Out Loud Press Enter to Stop Reading Page Content Out Loud Screen Reader Support